Assim como na pintura e na literatura, convencionou-se dar nomes aos diferentes períodos históricos na música clássica. São conjuntos que agregam similaridades entre elementos da história em si com as características das obras dos grandes compositores. Desses períodos, destacam-se seis: o medieval, o renascentista, o barroco, o clássico, o romântico e o contemporâneo, em que estamos desde a virada do século XX.
Foto: Renato Mangolin
Cada um desses estilos é produto de sua época e da genialidade dos seus protagonistas, sendo resultado de uma simbiose entre indivíduo e contexto. Todos também são resultantes da ligação com a sociedade europeia, predominantemente ocidental, em que estavam inseridos.
O concerto do último dia 10 de junho teve uma pretensão panorâmica. Das cinco obras que estavam no programa, quatro se inserem em algum ponto dessa linha do tempo. Antonio Vivaldi era do período barroco, do qual Bach era grande protagonista. O filho deste, Carl Philipp Emanuel, marcou a transição do barroco para o período clássico, no qual se insere Johann Joachim Quantz. Já Théo Charlier está entre o romântico e o contemporâneo.
Mas aí entra o Concertino para Bandolim e Cordas de Lipe Portinho. Onde se insere? Basta ter sido composta no século XXI para ser contemporâneo do ponto de vista estético?
Há uma certa insuficiência dessa linha do tempo para acolher o novo. O que, por outro lado, revela uma vocação valiosa da OSB revela ao executar a obra. A orquestra sinfônica não se presta apenas à repetição do já consagrado. É também espaço para experimentação de sonoridades. De abertura ao acaso. Especialmente naquilo que reflete nossa identidade.
O que é inusitado na peça de Lipe Portinho é que havia momentos em que essa peça parecia se deslocar entre os diferentes pontos da linha do tempo canônica, digamos assim, da música clássica. Simultânea e sucessivamente. Ao mesmo tempo em que havia traços renascentistas ou mesmo barrocos, havia o solista no bandolim. Quase sugerindo um contraste entre o choro brasileiro de hoje com as cordas de ontem. Como inseri-la nessa linha do tempo?
A revelação veio nas notas de programa. Trata-se de uma obra inspirada na estética do Movimento Armorial. É uma obra com parâmetros criativos rígidos, mas com base na cultura popular.
O Movimento Armorial foi criado por Ariano Suassuna na década de 70 com a ambição de ser uma revolução artística completa na música, na dança, nas artes visuais, na literatura.[1] Nas artes visuais, a ausência de perspectiva, cores puras e o apelo à estética dos brasões e estandartes deu causa ao nome “armorial”. Seu objetivo era fundar uma arte brasileira erudita a partir dos folhetos do romanceiro popular nordestino. Surgiu nas esculturas, nos cordéis, nas xilogravuras uma estilística valiosa, que a história do Brasil ainda não se dignou a prestar reverência à altura que sua produção merecia.
Foto: Renato Mangolin
Na música do Movimento Armorial, surgiu a Orquestra Armorial e o Quinteto Armorial. Agregava a rabeca, o bandolim e diversas percussões, o que não se vê comumente na formação da orquestra sinfônica. E desde o primeiro disco da Orquestra Armorial, via-se nos sons elementos desde a estética medieval até a contemporânea, com recheio de nordeste. Tudo sob as bênçãos do imenso César Guerra-Peixe, que não só colaborou com composições, mas também com a formação dos membros do movimento.
Elementos daquela linha do tempo da música clássica acabaram nordestinamente internalizados na música do Movimento Armorial. O medieval e o renascentista se fundiam com o sertanejo em forma de orquestra. Como diria Oswald de Andrade, autor do canônico Manifesto Antropofágico, a música armorial foi uma antropofagia da música clássica europeia pelo Brasil. Lipe Portinho fez muito bem ao rememorar, pela música, o valor de Ariano Suassuna e da música armorial, produto da ambição de uma arte brasileira.
Além de ser uma antropofagia de elementos das diferentes épocas da música clássica, ambicionou ser brasileiro. Cabe na linha do tempo?
[1] Sobre o tema, ver TAVARES, Bráulio. ABC de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2007, pp. 103-112.